A Copa do Mundo revela mais sobre nós do que estamos dispostos a admitir

Por Carlos Rydlewski

Os fatos relacionados à preparação do Brasil para a Copa têm sido interpretados à luz de dois termos— “eles” e “nós”. “Eles” são os violões de sempre. Leia-se o establishment político, culpado pelos desmandos, altos preços, atrasos e outras trapalhadas relacionadas ao evento. “Nós”, por outro lado, somos os outros, os inocentes, a um tempo vítimas e espectadores dessas barbaridades. A distinção entre esses dois campos pode ser reconfortante, principalmente para “nós”, mas não é real. Os entraves em torno da Copa do Mundo revelem mais sobre a sociedade brasileira como um todo do que estamos dispostos a admitir.

Vamos por partes.

A Copa de 2014 será a mais cara da história. A conta pode atingir R$ 8 bilhões. Em comparação com as duas últimas edições do evento, o valor da versão brasileira supera em três vezes os gastos realizados em 2006, na Alemanha, e em quatro vezes a conta de 2010, na África do Sul. Agora, convenhamos, qual a novidade dessa gastança? Em geral, as grandes obras executadas no país estão entre as mais dispendiosas do planeta. E se essa prática revela a ganância de grupos político-econômicos, também reflete a leniência e a omissão com que a sociedade se acostumou a lidar com esse tipo de problema.

Em frente.

As obras da Copa de 2014 estão entre as mais atrasadas da história da competição. Na verdade, há dúvidas se o alongamento dos prazos no Brasil supera o registrado entre sul-africanos. Mas disputamos essa liderança às avessas, cabeça a cabeça. Então, cabe a pergunta: onde, ou em que áreas, os prazos são cumpridos no país? Quem entrega o prometido na hora combinada? Para responder a essa pergunta, pense tanto nos prestadores de serviços públicos, mas também nos privados.

Ainda em relação a prazos, mais um ponto: qual a real habilidade de todos os setores da sociedade brasileira em lidar com projetos de longo prazo? Quais projetos desse tipo estão sendo tocados com eficácia nos últimos anos? No passado eles existiram. Tome-se como exemplo a construção do parque aeronáutico no interior paulista, polarizado pela Embraer, e os avanços sistemáticos na agricultura, conduzidos pela Embrapa. E hoje? A agravante é que a erva daninha da ineficiência tem tudo para se reproduzir adiante. As mesmas críticas feitas à organização da Copa — em essência, os gastos e o descumprimento de prazos — já estão replicando em relação aos Jogos Olímpicos no Rio, em 2016.

Mais um passo.

O processo de preparação da Copa de 2014 (o que inclui a Copa das Confederações, de 2013) quebrou em definitivo o mito segundo o qual o brasileiro é gentil, cordial. Vivemos em uma sociedade violenta. Aliás, somos violentos em proporção (intensidade e número) surpreendente. Tal constatação é válida mesmo que consideremos que as ações agressivas registradas nos protestos de rua estejam sendo conduzidas por uma minoria entre os manifestantes.

De novo: qual a novidade? Convivemos com o crime e com a revolta por ele despertada, em meio assaltos, linchamentos públicos, bandidos amarrados a postes, além de cidadãos sob tensão e medo permanentes. Na capital paulista, a violência já contaminou o evento chamado Virada Cultural a ponto de torná-lo praticamente inviável.

Há mais.

No campo das grandes chagas nacionais, vimos surgir no início deste mês uma campanha de prevenção contra a prostituição infantil durante a Copa. Trata-se de uma iniciativa louvável. A preocupação está baseada no fato de que alguns jogos serão realizados em estados que ostentam os piores índices de ocorrência de crimes desse tipo (Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte). Aqui, a pergunta que cabe é a seguinte: e depois da Copa? Quais serão os desdobramentos da campanha?

Depois da Copa, a resposta é a mais simples de todas: os problemas continuam. Como sabemos, eles têm pouco ou nada a ver com o evento. Estão incrustados “neles” e em “nós”, em uma sociedade cujos dilemas (somente alguns deles) estão sendo expostos de forma mais aguda nos últimos anos. Observe-se que a indignação pura e simples também não serve a ninguém. Deveríamos, porém, aproveitar melhor esse momento em que um baita holofote foi lançado sobre todas essas mazelas. Não basta a revolta ou o choque emocional com os fatos. A parte mais importante do Brasil é a que tem de ser construída depois do campeonato de futebol. Os estádios já são coisa do passado.